Eu vivi 14 anos na Europa e foi lá que me descobri e me formei no mundo das artes. As minhas referências são muito marcadas pelo cenário europeu. Porém, recentemente, agora que estou no Brasil há quatro anos e tenho pesquisado artistas e movimentos nascidos aqui, noto como há elementos estruturais no meu processo de criação que vêm de um processo artístico-cultural desenvolvido a partir do Brasil há muitos anos (e eu nunca tinha tomado consciência disso).
Quando me mudei para Berlim em 2002, uma das primeiras coisas que fiz foi visitar a Akademie der Künste e logo que entro no museu, me deparo com uma sala cheia fitas de papeis a serem a cortadas pelos visitantes - a obra CAMINHANDO (1963) de Lygia Clark. Na época, não tinha ideia do que era o neoconcretismo, um dos movimentos mais marcantes da história da arte no Brasil.
Caminhando é uma obra-percurso, algo que se aproxima de uma performance em que o espectador se transforma em artista-criador (embora Lygia Clark sempre tenha recusado categorizar seus trabalhos proposicionais como performances - sobre Lygia Clark e a performance art). Em caminhando uma fita möbius (tira de papel com uma dobra em espiral, constituindo uma superfície contínua) pode ser cortada diversas vezes, ficando cada vez mais fina. Segundo a própria Lygia Clark: "No final, o caminho é tão estreito que não pode mais ser cortado. O ato é o que produz o caminhando. Nada existe antes dele e nada depois." (sobre Caminhando)
Amei tanto este trabalho que quiz refazê-lo diversas vezes em casa. A vida continuou, eu segui meu caminho pela performance art e neste final de 2021, 19 anos mais tarde, começo a entender como o movimento neoconcreto, de que Lygia Clark, junto com outros artistas visuais como Lygia Pape, Hélio Oiticica, o poeta e escritor Ferreira Gullar, entre outros, está de certa forma incorporado em mim e em quase todos os artistas brasileiros de que gosto muito hoje.
Lygia Clark, a partir de um certo momento de sua produção, passou a propor o desaparecimento ou internalização do objeto de arte no corpo, um corpo que não era especificamente o dela, mas o corpo de cada indivíduo que fosse vivenciar sua obra.
Imagem da obra Casal (1969), realizada no MOMA de Nova York em 2014. Foto: Byron Smith para o The New York Times.
Desde 2017, tenho nomeado os meus trabalhos em telas, desenhos, fotografias de ações... de restos de mim. Recentemente, tenho desenvolvido uma série de quadros que não ficam especificamente pendurados numa parede para observação e em que uma pessoa pode entrar:
imagem atual do meu ateliê de criação
Em 2020, fiz uma exposição individual no MUNA (Museu Universitário de Uberlândia) , com vídeos e performance, denominada Corpo Ausente. Minha última performance, realizada presencialmente em setembro passado no MAC USP (projeto CLAREIRA), fala de um corpo presente-ausente e recebeu o nome CORPO AUSENTE (ou à noite eu choro).
corpo ausente (ou à noite eu choro), CLAREIRA MAC USP, setembro de 2021
Tenho trabalhado a desaparição ou incorporação do corpo no objeto. Indicado uma ausência do corpo com uma possível permanência da presença; uma permanência do vivo naquilo que vai além da existência física de um determinado indivíduo. Num olhar imediato, talvez justamente o oposto do que Lygia Clark e os demais neo-concretistas queriam mostrar: a importância da experiência sensorial enquanto corpo e presença na obra de arte. Num olhar mais delicado, vejo a mesma intenção destes artistas, realizada em outro contexto de época e história, nos meus trabalhos: a composição de uma obra que vive, seja no corpo ou no objeto. E no de outros artistas que admiro e sigo como Ana Maria Maiolino, Lenora de Barros entre outras e outros (mas isto já é assunto para outro post deste blogue).
Neste momento, estou preparando uma aula sobre performance art no Brasil para um público estrangeiro. Comecei minhas pesquisas com a palavra performance e acabei mergulhando nos conceitos de interatividade, relacionalidade, experiência, percepção que marcam o movimento neoconcreto que nasce no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, no final dos anos 1950 e tomam projeção no mundo todo apartir de então. Vejo a performance no Brasil, mesmo com a fundamentada relutância de Lygia Clark em se associar a este movimento, profundamente ligada a estes conceitos. O que atribui à performance art de artistas brasileiros (se é que se pode falar numa especificidade geográfica de um movimento global como a performance art) características muito específicas inconscientemente enraizadas ou incorporadas ao longo do tempo.
Quando você mergulha nas águas de Lygia, elas penetram em nossos fluidos vitais, ficamos embebidos deste prazer, e corrompidos pela experiência nova, sempre nova, sempre nova